2° dia do Festival Cultural Lavagem da Madeleine

Numa parceria da Associação Viva Madeleine! e o Centro Cultural Itinerante Verso, aconteceu na quarta-feira, o colóquio “Diálogos Afro-Transatlânticos, no contexto do Festival Cultural Lavagem da Madeleine, no seu segundo dia, e por conseguinte do Ano/Année France-Brasil, que vem sendo oficialmente celebrado desde 1° de abril em toda a França, com 300 eventos no total.

O encontro debateu com especialistas e vivenciadores a cultura afro-brasileira e sua influência na identidade nacional, através de manifestações como, por exemplo, o centenário Bembé do Mercado, em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano, e a 24a Lavagem da Madeleine, em si, no próximo domingo, dia 14, nas ruas da Cidade Luz. O rendez-vous, a princípio, intelectual, aconteceu no Césure, no Campus Censier da Sorbonne Nouvelle, no 5° distrito, o famoso Quartier Latin da Ville Lumière, terminou numa apoteose de todos os palestrantes e organizadores em cima do palco, com samba de roda, capoeira, congraçamento e alegria: todes caíram, literalmente, no samba!

Era como se a Lavagem festiva saísse das ruas e contagiasse, no espaço de alguns minutos, a prestigiosa e secular universidade francesa. No início, por volta das 14h, a coordenadora do evento, Aline Silva, secretária da Associação Viva Madeleine!, introduziu a tarde de debates, e chamou para falar, primeiro, o secretário de Cultura da cidade paulista de Santos, Rafael Leal. Ele traçou similaridades afros do que acontece em Santos e em Salvador. Destacou ações como a Arte Preta, com edital e evento já enraizado na população santista, os 25 anos da Festa de Yemanjá, a celebração do Dia do Samba em 2 de dezembro, que existe há mais de 60 anos, e por fim o desfile das escolas de samba, com a segunda mais antiga agremiação do Estado de São Paulo, Carnaval que acontece uma semana antes do da capital paulista.

Esse ponto de intercessão Santos-Salvador será visível em Paris hoje, dia 12, quando o grande guitarrista baiano Armandinho Macêdo será convidado do presidente Zé Virgílio, do Instituto Arte no Dique, de Santos, para tocar com seus músicos. “Incentivamos também, em muitos anos de festivais, filmes feitos por jovens santistas em vulnerabilidade social”, disse, acompanhado em Paris por sua diretora de audiovisual, da Prefeitura de Santos, Raquel Pellegrino. Juntos, aproveitam a semana para troca de experiências e contatos com os participantes, para futuras parcerias. Eles levaram e projetaram um filme institucional sobre o trabalho que desenvolvem. Vale lembrar que Santos é a cidade brasileira do audiovisual pela UNESCO, cuja sede é em Paris.

Na sequência, tomou a palavra Pai Pote, babalorixá ou pai de santo, de Santo Amaro da Purificação, para abordar a importância ancestral da realização do Bembé do Mercado, manifestação/festival religioso e de cultura afro do Recôncavo Baiano, a 70km de Salvador. “É o maior Candomblé de rua do mundo. Ali são representadas 65 instituições, em mensagem universal contra a intolerância religiosa, o preconceito, a homofobia e a favor das minorias”. Destacou a música e a capoeira, cruciais no festival, e as presenças de ialorixás (mães de santo) e babalorixás (pais de santo) respeitados na região que é berço de muitos terreiros. Sempre emotivo em sua mensagem de paz, para concluir cantou em iorubá um cântico sagrado, no final de sua participação, aplaudido de pé.

Foi então exibido o média-metragem “Os 130 anos do Bembé”, com direção e roteiro de Daniel Barata e Thaís Brito, sobre o afro-turismo no Recôncavo, em geral, porém focado no Bembé. São vários depoimentos de mães e pais de santo, imagens do mercado, da feira, panorâmicas de Santo Amaro, terra de grandes talentos artísticos, berço de Caetano Veloso e Maria Bethânia, até o final com a oferenda de presentes na praia de Itapema, em plena Baía de Todos os Santos, pertencente ao município.

Em seguida, o diretor de Cidadania Cultural da SECULT – Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Salvador, Chicco Assis, e Antonioni Afonso, doutorando na Faculdade de Administração da UFBA – Universidade Federal da Bahia, abordaram o tema Patrimônio Imaterial. Chicco ressaltou, entre outras questões, a importância da preservação de espaços em Salvador, como terreiros de Candomblé, para a continuidade dos ritos. Citou também planos já implementados, como o de fortalecer a colônia Z1, de pescadores do Rio Vermelho, os responsáveis pela festa, onde se celebra, desde 1923, a famosa Festa de Yemanjá, mundialmente conhecida, em 2 de fevereiro.

“82% da população de Salvador é afro-descendente”, disse, “e temos então de fomentar, a nível municipal como estadual, ações para que a cultura afro seja reconhecida”. Fez conexão entre a Festa do Bonfim e a Lavagem da Madeleine, citou também a Festa de Santa Bárbara/Yansã, que acontece em 4 de dezembro, e concluiu sua fala: “Esse capital afro é uma forma de reparação”.

Antonioni Afonso, doutorando da UFBA, prosseguiu abordando processos de salvaguarda de todo o patrimônio imaterial. Ele é filho de santo do terreiro de Pai Pote, com 12 anos de iniciado, e há cinco é o produtor executivo do Bembé do Mercado. “Em 1937 foi implementada a política brasileira de preservação do material, aquele que a gente tomba. E em 1966 foi dado um grande passo na política social em direção aos direitos culturais. Em 2003, com uma convenção junto à UNESCO, implementamos planos de salvaguarda de manifestações de 12 bens imateriais que ocorrem na Cidade do Salvador”, disse. Entre essas manifestações estão os terreiros, o cortejo do 2 de Julho (Independência da Bahia), o samba junino, a capoeira, o forró e Yemanjá, para citar alguns.

Esses planos, esclareceu Chicco Assis durante a conversa com a plateia que se seguiu, vieram complementar o “Rolê Salvador Cidade Afro”, uma versão voltada para o afro-turismo, implementada pela SECULT em maio de 2024, que visa a fortalecer o projeto de roteiros afro da cidade. Eles são 11, com a perspectiva de se aumentar a lista.

Após um coffee break, os diretores Daniel Ortiz e Simone Tortoriello apresentaram o seu documentário “Célébration du Lavage de la Madeleine à Paris”, de 2015. Membros da Association Île de France (o termo significa, em português, a região metropolitana de Paris), explicaram que a Lavagem se tornou Patrimônio Cultural da Île de France naquele ano de 2015, e é como uma espécie de “madrinha da nossa associação”, afirmou a dupla que ontem, na véspera, foi agraciada com a Medalha da Lavagem da Madeleine, durante a cerimônia oficial de abertura da mesma, na Embaixada do Brasil na França, 8° distrito de Paris.

Os palestrantes seguintes, fizeram intervenções mais emotivas e afetuosas, lembranças das primícias da Lavagem da Madeleine e seus encontros com Robertinho Chaves, seu fundador, presente na plateia e ovacionado. Falou, primeiro, o músico Giba, fundador e maestro do Grupo de Percussão Batalá, desde a primeiríssima Lavagem em junho de 1998, como um embrião da Lavagem de hoje, e que aconteceu nas escadarias da Basílica do Sacré-Coeur de Montmartre, em plena Copa do Mundo de Futebol da França. Disse Giba: “Desde Montmartre me sinto parte da família. Eu paro tudo o que estiver fazendo para viver a Madeleine”.

Ao seu lado, na mesa, estava o Mestre Leto do Maracatu, manifestação cultural de Pernambuco, que também se integrou – e se entregou! – aos encantos da Lavagem da Madeleine. Ligado ao Candomblé, é filho de Xangô, “que reina com o povo, por isso, somos uma só árvore. Perpetuamos a Madeleine porque carregamos a ancestralidade. Ficamos 500 anos calados, e hoje estamos aqui, na Universidade da Sorbonne”.

Todas as falas tiveram as imprescindíveis traduções do brasileiro Wanderson Ribeiro para o francês, e de Frédéric Müller, que é francês, para o português. À imagem da Temporada/Saison cruzada/croisée França-Brésil!

Mesas afastadas para os lados do palco, a cena do Anfiteatro B da Sorbonne Nouvelle, então, abriu alas para as artes. O Coral do Marais, bairro do 4° distrito de Paris, conhecido como “A Banda do Marais” , que ensaia do Centro de Dança do Marais (direção de Antoine Carrance) e tendo Lanna Zita na sua direção e nos arranjos, apresentou lindamente cinco canções, de “Emoriô”, de João Donato, um tributo a Oxalá, à belíssima “Cordeiro de Nanã”, de Dadinho e Mateus Aleluia d’Os Tincoãs, mais músicas de temas como a palavra Madalena, outra em louvor a Yemanjá e para terminar um grande sucesso do Carnaval de Salvador. A plateia acompanhou batendo palmas, se agitando e cantando também, inclusive a pedido da diretora. No violão, o músico Jean Poulhalec dava os tons. Foi um momento mágico.

Para encerrar, o grupo Capoeira para Todes, que faz sucesso na cena parisiense com suas acrobacias, performances transgressoras e teatrais, o vogue e improvisações de dança e muito ritmo ao som do berimbau. São fascinantes, contagiaram a plateia a ponto de convidados subirem no palco, com a advogada baiana Maria Andreza Sá Gonçalves, que veio especialmente de Lisboa para o evento, cair no samba de roda, junto com Pai Pote, Robertinho, Giba, Leto, Antonioni, Aline e tantos mais, num desfecho alegre, festivo e apoteótico do colóquio.

Viva a Madeleine! Axé!

Texto e foto: Duda Tawil, de Paris. Na foto: Chicco Assis, diretor de Cidadania Cultural da SECULT Salvador, e o secretário de Cultura de Santos-SP, Rafael Leal.

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